“Apesar de a gente ter contado aqui com um espaço bastante confortável, eu já participei de outras rodas de conversas e encontros, e muitas das pessoas que encontrei nesses lugares não estiveram aqui – ao menos eu não as vi. Além disso, acho que um ponto que talvez precisasse de mais ênfase diz respeito às crianças transexuais. O Buck colocou um pouco da experiência dele, o João Nery também citou um pouco disso, mas acho que vale eu contar um pouco da minha experiência, porque acho esse um debate necessário. Eu contei para os meus pais há uns três anos, quando eu comecei a minha transição. Eles me perguntam porque eu não contei antes. E estranho porque imagine uma criança que cresce num mundo onde, na escola, as aulas de biologia mostram o homem e a mulher. A única exceção a isso está na genética, por exemplo, onde a gente fala em anomalias – Síndrome de Klinefelter, Síndrome de Turner –, mas nunca se fala em transexualidade. A pressão sobre essas crianças é inimaginável, ela não tem como se expressar. Eu me sentia como mulher já antes dos seis anos, se eu fosse explicar para os meus pais, eu não iria ser levada a sério. Porque o discurso das crianças não é considerado. Não há discussão na escola sobre transexualidade. Enfim, acaba-se cobrando da criança uma resposta que ela não tem. No meu caso, a saída foi partir para a fantasia, era onde eu vivia. Até que você vai crescendo, no meu caso eu acabei me isolando bastante das pessoas. Eu descobri que existiam tratamento hormonais para bloquear a puberdade – inclusive para menores de idade, mas não aqui no Brasil – por meio de uma reportagem da revista Veja em 2004 – numa matéria que, a meu ver, não tratou o assunto da forma que poderia. Eu tinha 14 anos. De qualquer forma, foi a primeira vez que eu me deparei com a palavra transexualidade sendo tratada com alguma dignidade. Porque, até então, eu só via esse termo circulando como chacota nos programas de fofoca que minha avó assistia à tarde em casa. Mas ao mesmo tempo em que eu descobri que o anseio de alterar meu corpo era possível, eu descobri também que uma parte informada da sociedade me via como uma doente. Por isso uso esse momento para ressaltar que a questão das crianças sexuais precisa ser mais discutida. E não somente no que diz respeito às crianças, mas também de pessoas que são diagnosticadas como esquizofrênicas, borderline, bipolaridade, uma parcela que também tem dificuldade para ter acesso a essas cirurgias e tratamentos”