LEO BARBOSA (BR), coordenador do Instituto Brasileiro de Transmasculinidade (Ibrat) ABC

Tivemos a mesa sobre o binarismo e o não binarismo e você fez um comentário sobre, por outro lado, ser legítima a necessidade de sentir-se parte de um grupo – ou de um gênero.

Eu sinto essa necessidade de estar dentro do binarismo. Eu sempre reconheci em um dos polos, que é o masculino. Mas isso não me era permitido, porque a sociedade te constrói a partir do sexo biológico. Não estou deslegitimando a real vontade de quebrar os gêneros, a fim de abarcar e contemplar todo mundo. Mas acho que não devemos esquecer que o binarismo significa algo para algumas pessoas. Eu sou uma pessoa binária, me sinto contemplado pelo gênero masculino. Mas aceito que as pessoas não se sintam forçadas a escolher nenhum…

Mas você não vê nenhum problema em ser binário, é isso?

Em ser binário, não. Acho que o problema está na construção social do binário. Você movimentar toda uma sociedade, toda uma estrutura – mundialmente – em torno do binarismo é que é um problema grave, porque você passa a ter todas as leis voltadas para esse binarismo. Até os banheiros são binários. O certo não era deixar o banheiro unissex? Mas e aí, como a gente faz a quebra desses conceitos? Como quebrar esse binarismo, se falta uma compreensão melhor dos próprios gêneros?

Qual você acha que é a maior conquista em deixar que os banheiros masculino e feminino sejam usados por quem se sentir à vontade para usar cada um?

O respeito. Se existem banheiros para homens e mulheres, e pessoas que se reconhecem como homens e mulheres, não vejo qual a grande dificuldade e em permitir que cada um use o que lhe convier. Agora, como fica o caso das pessoas não binárias, que têm um visual não binário, e que querem, por exemplo, entrar num banheiro feminino?

E você tem uma resposta para essa pergunta?

Com mais uma pergunta (risos). A pessoa não binária que tenha um visual considerado “feminino” se reconhece como? Aí é que está. Porque os banheiros estão refletindo esse reconhecimento – esse é o problema. Os banheiros se dizem reconhecidos nesse binarismo. O problema não é a pessoa se reconhecer binária ou não binária, mas sim a estrutura mundial que foi criada em cima desse binarismo. Tudo é binário. As leis são binárias, elas não contemplam as pessoas não binárias, e sim homens e mulheres. Olha que loucura! As pessoas não binárias estão à margem disso. É preciso movimentar todo o Poder Judiciário para dar direito a alguém de ir ao banheiro! É um lugar onde você vai para fazer suas necessidades fisiológicas! Mas as pessoas criam uma fantasia de que uma pessoa pode fazer algum mal à outra lá dentro. Eu não consigo conceber que uma mulher trans vá ao banheiro para “catar” outra mulher – trans ou cis – à força. Porque deve ser isso que as pessoas pensam. Estatisticamente, quantas pessoas trans já violentaram pessoas cis dentro de um banheiro? Já o contrário é diferente… Isso precisa parar. Só porque uma pessoa rompe com essa norma ela passa a ser não contemplada pelas leis? Foi só recentemente que se conseguiu que as mulheres trans sejam contempladas pela Lei Maria da Penha [Lei 11 340, que visa aumentar o rigor das punições sobre crimes domésticos cometidos contra mulheres]. Isso, para mim, era algo lógico. Mas as divergências nesse sentido se dão justamente nas delegacias das mulheres, porque a lei fala em gênero, a portaria que seguiu para as delegacias apresenta o termo “sexo”.

Com base na sua experiência, como você o machismo entre os homens trans?

Ele existe. Muito. Há muitos homens trans que, ao se reconhecerem como homens, reproduzem o mesmo tipo de comportamento sexista com relação às mulheres. O que é um absurdo. E não somente porque essas pessoas seguramente sofreram preconceito por serem trans, mas também porque, com certeza, um dia esse homem já sofreu pesadamente os efeitos do patriarcado – porque, na maioria dos casos, esse homem trans começou se reconhecendo como uma mulher lésbica. E inclusive, os homens trans também sofrem preconceito por parte de feministas radicais, que alegam que, já que agora eles são homens, eles não têm direito mais expressar as experiências vividas quando eram mulheres. Sendo que, ao mesmo tempo, nos “inbox” da vida, elas ficam arregimentando esses homens para se unirem ao movimento delas como homens. Na verdade, essas feministas radicais querem que todo mundo que não seja uma mulher cis morra.

JOÃO W. NERY (BR)

O que você acha que a realização dessa conferência representa dentro da trajetória do movimento LGBTQIA no Brasil?

Primeiro ela é internacional. Então tem gente aqui de vários lugares, de outros países, acho que a vinda do Buck Angel é um marco dentro do movimento brasileiro das transexualidades masculinas. Então, sem dúvida nenhuma, é muito importante esse encontro porque ajuda a aumentar a visibilidade das sexualidades plurais, das discussões de gênero, do âmbito queer. Além da divulgação que isso tem na imprensa. É uma pena que esteja acontecendo só em são Paulo, acho que ele teria que ser itinerante, ir para outros estados também. SSEX BBOX está de parabéns, porque é uma empreitada muito difícil, sem dinheiro, com muitos voluntários ajudando, trabalhando. Eu só tenho elogios.

O que você acha do tom midiático do Buck Angel?

Eu nunca vi nenhuma performance dele, mas conversei com ele e o discurso é ótimo. Mas de qualquer forma eu acho a postura dele muito interessante, quando ele diz que é um homem de vagina. Se ele quer mostrar a vagina dele que mostre, eu também tenho, mas não mostro a minha. Ele também ganha dinheiro com isso, trabalha com a pornografia, enfim. Eu sou um cara mais acadêmico, mas acho válido, porque é uma forma também política de atuar.

O Leo Moreira Sá disse enxergar uma grande dificuldade de trazer os homens trans para o movimento político. Você vê isso também?

Sim. Eu acho que o movimento trans masculino é muito inicial ainda, os garotos são muito jovens, estão muito preocupados em contar para os pais, em saber qual o hormônio que vão usar, em saber que psicólogo conseguir. Então há uma visão ainda muito individualista, egocêntrica mesmo, muito umbilical, olhando para o próprio umbigo. E a grande maioria ainda não tem a dimensão do que representa esse movimento das transmasculinidades para conseguir direitos que eles nem sabem que não têm. Eles nem sabem que são patologizados, que são considerados doentes mentais. Tudo bem, eles sofrem transfobia em casa, na escola, no trabalho etc., mas ou choram ou se deprimem…

Eles não teriam ainda se dado conta da especificidade desse preconceito…

Exatamente. Eles não têm. Falta uma conscientização maior. Quando você chama esses garotos para uma reunião, tem que botar uma cerveja no meio senão eles não vão. E não é para ser uma festa, é uma reunião política. Mas cada trans homem que eu adiciono no meu Facebook eu coloco a ficha do Ibrat [Instituto Brasileiro de Transmasculinidade] para eles se cadastrarem, e indico também os outros trans homens do mesmo estado que ele, para ele entrar em contato. Essa é uma forma de fortalecer o movimento, colocar uns falando com os outros, se cadastrando através do Ibrat. Acho que é o primeiro passo para uma conscientização política maior, de empoderamento.

Como você vê a relação entre a transmasculinidade e o machismo?

É muito comum no período de transição você encontrar um estereótipo machista num trans homem. Isso porque nada no corpo dele o favorece ser visto como uma pessoa do gênero masculino. É a voz fina, o quadril largo, a presença dos seios, enfim, tudo é feminino. O que sobra para a afirmação dessa identidade é a roupa, um relógio mais bruto, é talvez segurar o saco que nem existe, é talvez baixar o queixo para falar mais grosso, ou assimilar estereótipos machistas. Isso tudo para poder fortalecer sua autoestima e a sua figura masculina. Mas eu observo que na medida em que eles começam a se hormonizar, começam a ficar mais seguros da sua figura masculina, esses estereótipos começam a se esvaziar. Não há mais necessidade deles. Porque, na verdade, todos nós, obrigatoriamente, tivemos que viver num mundo feminino. Nós sabemos o que é um assédio sexual, sabemos o que é um machismo, nós vivenciamos isso de certa maneira mesmo não nos sentindo mulheres. Então, não tem como um homem trans reproduzir o machismo como um homem cisgênero. Não estou dizendo que seja impossível nem que não exista. Existe de tudo. Mas, de uma maneira geral, o machismo é altamente combatido dentro do movimento, inclusive há muitos homens trans que estão hoje no transfeminismo. Um dos princípios do Ibrat é fortalecer o orgulho de ser trans e combater toda forma de preconceito, toda forma de patriarcado, dessa coisa terrível que é machismo.

E sobre a relação dos trans homens com gays e lésbicas cisgêneros?

Aí varia muito. Falo pelos que vieram comentar comigo. Da parte das lésbicas existe, às vezes, uma certa agressividade com relação aos trans homens, negando o fato de eles serem homens. Porque elas não são – sobretudo, as que se dizem sapatão. Não sei se elas se sentem ameaçadas… Não quero julgar. Mas há uma certa reclamação de que as lésbicas acusam os homens trans de serem lésbicas também, só que mais masculinas. Da parte dos gays também existe um pouco desse preconceito. Agora, por outro lado, há muitos trans homens que namoram gays – como namoram outros trans homens também. São trans gays. Mas, de qualquer forma, o movimento é gay. O movimento LGBT é predominantemente gay. Eles têm o poder.

São os que chegam aos cargos de gestão quando esses surgem, por exemplo.

Porque o fato de ser homossexual não te impede de trabalhar. Na verdade, a letra T tinha que ser a parte do LGB. Porque não é uma questão de orientação sexual, é uma questão de identidade de gênero. Então, os transexuais e os intersexuais acham que tinham que configurar uma questão a parte. Porque são outras necessidades. Os gays precisam de leis, claro, para se combater a homofobia – não tem lei nenhuma. Como não tem para os trans, nesse ponto nós estamos juntos. Mas muitas outras demandas são diferentes. Tudo é gay. A Parada do Orgulho LGBT é gay. As lésbicas são gays. Fica difícil você ter visibilidade dentro desse sufoco todo. Mas acho que já houve uma melhora. Representantes importantes dos movimentos gays já estão fazendo uma autocrítica sobre essa questão, já estão com um olhar um pouco diferenciado para o movimento T.

CLAIRE RUMORE (EUA)

O que você pensa sobre realizar uma conferência como essa num país com tanta herança de racismo, sexismo, homofobia e transfobia?

Acho que a primeira coisa que temos que pensar é que essa herança é universal, não é uma particularidade brasileira. Como estrangeira, vinda dos Estados Unidos, quando eu penso no Brasil, penso em positividade em relação ao sexo, liberalismo na sexualidade, nas danças sensuais, no samba e no quanto as pessoas aqui são livres com seus corpos – comparando com o lugar de onde eu venho. Somos mais fechados. Inclusive é muito interessante ver como você, sendo daqui, começou com uma pergunta que mostra que talvez você tenha uma perspectiva totalmente diferente da minha, uma pessoa que vem de fora. Daí a importância de realizar essa conferência aqui, pela chance de falar sobre essa dualidade, essa polaridade, das experiências em sexualidade. Ou seja, por um lado há preconceito e por outro, o liberalismo. Acho uma ótima oportunidade de avaliar todas as perspectivas. O mesmo, claro, poderia ser dito se realizássemos um evento como esse nos Estados Unidos. Também temos fobias e preconceitos que merecem toda a atenção.

É a sua primeira vez no Brasil?

Quarta vez.

E hoje, aqui pela quarta vez, você diria que somos mesmo tão liberais quanto você pensava?

Eu venho aprendendo mais sobre os brasileiros. Muitos dos organizadores da conferência são amigos meus e conversamos sempre sobre as mudanças políticas que têm ocorrido por aqui, do conservadorismo religioso que tem ganhado espaço no poder e nos conflitos que tudo isso causa, entre outros aspectos, nas questões LGBTQIA. Isso tem me dado outra perspectiva sobre a realidade brasileira e me feito perceber que, bem, o Brasil não é assim tão diferente de outros lugares. Mas mesmo assim, eu acredito que existe aqui uma abertura para a sexualidade que não se verifica nos Estados Unidos. E falo honestamente.

O que você espera dos próximos dias?

Eu acredito que vai acontecer aqui o que precisa acontecer. Então diria que estou confiante, mesmo com todas as diferenças que se reunirão aqui. Seguramente irão acontecer coisas inesperadas, algumas conversas podem ficar tensas, alguns convidados poderão acabar não vindo ou mesmo por conta de todo o impacto que as discussões causarão em quem assistir – afinal, não é sempre que se fala dos temas que serão tratados aqui. Tudo pode acontecer e eu espero que tudo aconteça [risos].

Para finalizar, diga algo sobre o Brasil que você achava e descobriu que é verdade.

Nossa… Deixe-me pensar…[risos].

Talvez nossas “danças sensuais”… [risos]

Sim! [risos]. Sua música e sua dança são realmente cheias de poesia. Além disso, acho que o Brasil tem uma herança linda de mudanças de comportamento e é um lugar muito espiritual. É isso que eu vejo aqui, algo que acho tremendamente inspirador e sempre comprovo em cada brasileiro que conheço, em todas as vezes que volto aqui. Vocês têm uma energia linda – e isso, sim, é único.

BUCK ANGEL (EUA)

Um homem otimista

Mesmo antes do início dos trabalhos da 1ª Conferência Internacional [SSEX BBOX] & Mix Brasil, logo na manhã do primeiro dia de debates, a reportagem já tratou de conseguir uma fala do “homem com vagina”, como ele mesmo se define, mais famoso do mundo. Buck Angel – homem transexual, produtor de filmes adultos, performer e ícone LGBTQIA – é militante, palestrante, escritor e tem a receptividade como seu maior cartão de visitas. Leia trechos da entrevista:

Qual a sua primeira impressão do Brasil?

Incrível! Porque eu cheguei no aeroporto e logo vi um café!!!! [risos]. Sou viciado em café. Mas gosto de café de verdade e o brasileiro é maravilhoso. Eu amei. Então diria que essa foi minha primeira impressão [risos]. Minha segunda foi ver pessoas realmente incríveis, lindas e amigáveis. Muito amigáveis, fáceis de você abordar e conversar. Eu viajo muito e posso dizer que não é assim em todos os países.

Mesmo? Tem-se questionado muito por aqui se somos de fato amigáveis.

Por quê?

Há tanta coisa acontecendo…

Mas no mundo inteiro… Não sei, eu senti esse clima amigável aqui. Talvez porque eu seja uma pessoa amigável. Eu acredito em energia. Então, se eu chegar para você e perguntar onde é o banheiro de uma forma brusca, dura, é totalmente diferente de chegar e perguntar a mesma coisa só que com um sorriso no rosto, dando um “oi” antes. De qualquer forma, todos têm sido tremendamente doces e gentis. E outra coisa: a comida… Eu amo peixe, por exemplo, e o peixe aqui é incrível. Enfim, eu amo comida, café e pessoas, e vocês têm tudo isso [risos].

Sobre a conferência, qual você diria que é a importância de realizá-la num país como o Brasil – que, entre outros problemas ligados a essa temática, tem níveis assustadores de morte de pessoas transexuais?

É justamente por isso! Há cinco ou seis meses eu mesmo não sabia do número de mortes de pessoas LGBTQIA aqui. E fiquei chocado! Boa parte do mundo não entende isso. Então, é claro que temos que fazer essa conferência no Brasil. É uma questão de direitos humanos, e não apenas de direitos dos brasileiros, as pessoas viverem suas vidas do modo como elas quiserem. Desde que você não mate ninguém, é seu direito ser gay, ser hétero, ser negro, ser branco, ser quem você é e quem você quiser ser. Então, o fato de haver pessoas por aí que estão nos assassinando é muito grave. Como ativista, eu tenho a voz para vir a lugares como o Brasil, onde minha “voz branca” é tão poderosa. Eu sou privilegiado por ser um homem branco hoje – eu era uma mulher gay branca.

E você pensa sobre esse viés racial nas suas ações?

Todo o tempo. Porque eu sei que ter me tornado um homem branco me deu poder. Muitos dos meus amigos são negros, minha vida inteira eu convivi com pessoas negras, por isso acho tão importante ser capaz de usar minha voz privilegiada numa arena como essa. É muito interessante observar como as pessoas me ouvem mais, por seu ser um homem trans branco, do que ouviriam um homem trans negro ou um gay negro. É muito triste, mas é a realidade. E a gente precisa tirar vantagem da realidade que temos. Eu me sinto muito honrado, e com sorte, por ser essa pessoa que pode promover mudanças no mundo. Você sabe o quão poderoso é isso? Sempre me emociono quando digo isso, porque eu não era assim. Eu era uma pessoa que me cortava, que já quis me matar, tinha uma vida horrível. E agora cá estou eu, no Brasil, entre essas pessoas lindas e amáveis.

E interessadas em ouvir o que você tem a dizer.

Exato. Isso é muita coisa. Você e eu juntos podermos provocar mudanças.

E o que você espera que vai acontecer por aqui ao longo desses seis dias?

Estou com muita expectativa. Mas de um jeito bom e realista. Muitas pessoas passarão por aqui e muita coisa vai mudar. Há muitas diferenças entre as tantas vozes da comunidade – aqui e no mundo todo –, mas isso é assim com todas as comunidades. Mas estamos aqui por único motivo: mudança. Todos estão cansados do modo como as coisas estão. Aqui, no Brasil, vocês estão cansados de sentir medo de andar na rua – gay, trans etc. – e serem mortos ou mesmo xingados de bicha, sapatão, o que seja. Chega! Estamos em 2015. Essa merda não pode continuar acontecendo.

Você é um otimista?

Dos grandes [risos]. 100%. Sou o cara que sempre olha as coisas de uma maneira positiva, porque eu acredito que se você expressa positividade será isso que você vai receber em troca. O copo está meio cheio. E funciona para mim. Ser uma pessoa positiva faz parte de uma atitude de mudança.