Tivemos a mesa sobre o binarismo e o não binarismo e você fez um comentário sobre, por outro lado, ser legítima a necessidade de sentir-se parte de um grupo – ou de um gênero.
Eu sinto essa necessidade de estar dentro do binarismo. Eu sempre reconheci em um dos polos, que é o masculino. Mas isso não me era permitido, porque a sociedade te constrói a partir do sexo biológico. Não estou deslegitimando a real vontade de quebrar os gêneros, a fim de abarcar e contemplar todo mundo. Mas acho que não devemos esquecer que o binarismo significa algo para algumas pessoas. Eu sou uma pessoa binária, me sinto contemplado pelo gênero masculino. Mas aceito que as pessoas não se sintam forçadas a escolher nenhum…
Mas você não vê nenhum problema em ser binário, é isso?
Em ser binário, não. Acho que o problema está na construção social do binário. Você movimentar toda uma sociedade, toda uma estrutura – mundialmente – em torno do binarismo é que é um problema grave, porque você passa a ter todas as leis voltadas para esse binarismo. Até os banheiros são binários. O certo não era deixar o banheiro unissex? Mas e aí, como a gente faz a quebra desses conceitos? Como quebrar esse binarismo, se falta uma compreensão melhor dos próprios gêneros?
Qual você acha que é a maior conquista em deixar que os banheiros masculino e feminino sejam usados por quem se sentir à vontade para usar cada um?
O respeito. Se existem banheiros para homens e mulheres, e pessoas que se reconhecem como homens e mulheres, não vejo qual a grande dificuldade e em permitir que cada um use o que lhe convier. Agora, como fica o caso das pessoas não binárias, que têm um visual não binário, e que querem, por exemplo, entrar num banheiro feminino?
E você tem uma resposta para essa pergunta?
Com mais uma pergunta (risos). A pessoa não binária que tenha um visual considerado “feminino” se reconhece como? Aí é que está. Porque os banheiros estão refletindo esse reconhecimento – esse é o problema. Os banheiros se dizem reconhecidos nesse binarismo. O problema não é a pessoa se reconhecer binária ou não binária, mas sim a estrutura mundial que foi criada em cima desse binarismo. Tudo é binário. As leis são binárias, elas não contemplam as pessoas não binárias, e sim homens e mulheres. Olha que loucura! As pessoas não binárias estão à margem disso. É preciso movimentar todo o Poder Judiciário para dar direito a alguém de ir ao banheiro! É um lugar onde você vai para fazer suas necessidades fisiológicas! Mas as pessoas criam uma fantasia de que uma pessoa pode fazer algum mal à outra lá dentro. Eu não consigo conceber que uma mulher trans vá ao banheiro para “catar” outra mulher – trans ou cis – à força. Porque deve ser isso que as pessoas pensam. Estatisticamente, quantas pessoas trans já violentaram pessoas cis dentro de um banheiro? Já o contrário é diferente… Isso precisa parar. Só porque uma pessoa rompe com essa norma ela passa a ser não contemplada pelas leis? Foi só recentemente que se conseguiu que as mulheres trans sejam contempladas pela Lei Maria da Penha [Lei 11 340, que visa aumentar o rigor das punições sobre crimes domésticos cometidos contra mulheres]. Isso, para mim, era algo lógico. Mas as divergências nesse sentido se dão justamente nas delegacias das mulheres, porque a lei fala em gênero, a portaria que seguiu para as delegacias apresenta o termo “sexo”.
Com base na sua experiência, como você o machismo entre os homens trans?
Ele existe. Muito. Há muitos homens trans que, ao se reconhecerem como homens, reproduzem o mesmo tipo de comportamento sexista com relação às mulheres. O que é um absurdo. E não somente porque essas pessoas seguramente sofreram preconceito por serem trans, mas também porque, com certeza, um dia esse homem já sofreu pesadamente os efeitos do patriarcado – porque, na maioria dos casos, esse homem trans começou se reconhecendo como uma mulher lésbica. E inclusive, os homens trans também sofrem preconceito por parte de feministas radicais, que alegam que, já que agora eles são homens, eles não têm direito mais expressar as experiências vividas quando eram mulheres. Sendo que, ao mesmo tempo, nos “inbox” da vida, elas ficam arregimentando esses homens para se unirem ao movimento delas como homens. Na verdade, essas feministas radicais querem que todo mundo que não seja uma mulher cis morra.